[Crônica] Entre o consumo e a falta dele: liberdade
Entre o
consumo e a falta dele: liberdade
No fim da adolescência eu acreditava que ter dinheiro implicava em trabalhar muito para ganhar mais. Eu precisava trabalhar cada vez mais para ter mais dinheiro. No início da minha vida adulta, entretanto, percebi que isso não era verdade. Me vi trabalhando mais e ganhando menos (principalmente depois que comecei a pagar imposto de renda). Em verdade, quanto mais dinheiro eu ganhava, menos dinheiro eu tinha. Isso acontecia porque meus gastos aumentavam. Foi quando tive o estalo: menos é mais.
E de lá para cá, fico na
tentativa de implementar a filosofia. Não é fácil. Vivemos em um mundo
consumista. E não consumir implica em ser excluído de muitas atividades sociais
e do relacionamento com muitas pessoas que são orientados pelo consumo (ou pela
troca simbólica dos atos consumistas). Não compro roupas a não ser que
realmente precise. Detesto, de coração, trocar de carro e de celular. Eu os uso
até que eles não queiram mais me servir.... Mas, bares e restaurantes sempre foram
minha fraqueza.
A Pandemia
nos propiciou – além de todos os seus efeitos negativos – a oportunidade de
rever uma série de práticas, feitas por hábito, principalmente ligadas ao
consumismo. Tivemos a evidência de como nossa vida social é preenchida por
práticas supérfluas. Que podem ser substituídas por práticas mais simples e
econômicas.
Já se foram
quatro meses que me mostraram que não preciso de restaurantes, cinema e passeios
nos shoppings. Minha fatura de cartão de crédito corresponde à 10% do que era.
Eu gastava 100 reais por semana de combustível. Em 4 meses, só gastei 120 reais ao todo no posto de gasolina – E isso porque fomos algumas vezes para nossa casa de
praia, um pouco distante. E ao não usar o carro, também me livrei de taxas de
estacionamento, zona azul, flanelinhas, que de moeda em moeda vão nos levando
centenas de reais ao mês. Fico imaginando o quanto de CO2 deixei de emitir...
Mas não é
só isso. Há produtos que somos obrigados a consumir devido às nossas relações
sociais cotidianas externas ao ambiente doméstico. Aqui em casa, com dois
filhos adolescentes, dois fracos de perfume e dezenas de desodorantes eram
consumidos por mês. É incrível a necessidade destes jovens machos de se
manterem bem odorizados... Já foram 4 meses e o perfume, que custa centenas de
reais, ainda está lá no banheiro, íntegro e resistente. Por mais que o senso comum
considere que o uso de desodorante é indispensável, não o é. Ao não sair de
casa, não correr, não precisar entrar em contato com pessoas estranhas, a frequência
de uso dos desodorantes diminui bastante, pelo simples fato do nosso corpo não
precisar dele. E com ele, o uso de roupas sociais, principalmente de calças,
meias e sapatos. Pijamas e roupas de dormir nunca tiveram tanta importância e
uso como agora.
A máquina
de lavar foi aliviada do seu fardo semanal. Nossas roupas passaram a ter uma
maior durabilidade no corpo. E aquelas camisas de malha, furadinhas, leves e sedosas
ao toque, antes usadas apenas para a intimidade do quarto, ganharam uma
ascensão às demais áreas da casa e às horas do dia. Elas aposentaram as roupas
caras e finas. Tornaram-se as preferidas do "novo normal".
Nossas
jubas não recebem mais tanta química, seja dos xampus industrializados, seja
dos cremes de pentear ou da pressão térmica dos secadores de cabelo. E aqui em
casa, tanto a esposa e os filhos são adeptos desta tortura capilar. Mas a
abandonaram. Cabelos brancos e
desgrenhados respiram livres da etiqueta social que tanto os domesticaram.
Ainda se submetem aos sistemas de controle, eventualmente, quando estamos
trabalhando nas lives e nas aulas remotas, que precisam que a câmera seja ligada... mas andam muito mais felizes,
soltos, libertos e naturais. E, pra bem e pra mal, nossos barbeiros e
cabeleireiras deixaram de ganhar nosso dinheiro semanal, dificultando a vida
deles, é verdade.
Nem tudo
são flores. Minha conta de energia elétrica, vergonhosamente, dobrou os
valores. O consumo de água mineral também dobrou. Às vezes, 20 litros não duram
dois dias... E, sem as distrações do mundo lá de fora, pude ir terminando todos
os meus projetos pessoais e acadêmicos que exigiam uma maior atenção e
dedicação. Me tornei mais produtivo, por assim dizer. Ou, de outro ponto de
vista, passei a trabalhar muito mais. Não fomos para a sala de aula, mas lives,
palestras e debates passaram a ocupar muito mais o tempo. Não sei como vocês
fazem por aí, mas um live de 30 min. me consome em 2h no mínimo de preparação,
releitura e anotações. Assim como a quantidade de artigos que chegaram para avaliar, dobraram. E ocorreu outro efeito: ter o tempo “livre” me fez exigir muito mais
de mim mesmo para compensar este tempo “livre”. Passei a me cobrar mais em produtividade.
Em trabalhar ainda mais horas por dia. Dobrei as metas que existiam antes da
Pandemia. Se era para eu publicar dois artigos por ano, eu precisava de no
mínimo quatro agora. Assim, são mais
horas de leitura, mas horas de escrita, mas entrevistas para realizar, mais,
mais, mais... Sim, o isolamento da Pandemia mexeu com a minha percepção do que
é ser produtivo. O maior tempo “livre” me fez ficar com menos tempo “livre”.
Parece um daqueles paradigmas temporais da física quântica...
Tenho
ciência que minhas condições sociais e econômicas me permitiram ter benefícios no
qual muitos não tiveram acesso. É um relato burguês, em todos os sentidos.
Amigos perderam os empregos. Conhecidos adoeceram e morreram. Agendas de trabalho e estudo foram severamente
desarticuladas. Mas, como diz o ditado: "há males que vem para o bem".
Apesar de contar o tempo para que a sociedade retorne e que nos livremos desta
anormalidade que ceifou tantas vidas, não pretendo voltar tão cedo para o consumismo
compensatório.
Post a Comment