[Entrevista] Quadrinhos e Sexualidade para a revista Galileu


Neste mês de fevereiro de 2019, a Revista Galileu fez um dossiê "Tudo sobre Quadrinhos", intitulado "o Incrível universo das HQs".

A matéria tem reportagem de Larissa Lopes e edição de Isabela Moreira.

Larissa fez uma entrevista comigo sobre Quadrinhos e Sexualidade. Na revista, minha participação colaborativa aparece na sessão "Discussão", na pag. 40.



Reproduzo a entrevista na íntegra a seguir:


+ Como a comunidade LGBTQ+ foi retratada ao longo da história dos quadrinhos? Personagens LGBT estão presentes nas primeiras HQs? Elas são retratadas de forma caricatural?

São situações bem distintas que dependem do local e do tipo de produção de quadrinhos.

Se olharmos para os comics mainstream estadunidenses, entre os quadrinhos de super-herois, por exemplo, o grande número de personagens cuja sexualidade não é heteronormativa fica bem restrito. Em sua grande maioria são vilões ou personagens de outras nacionalidades que não “americana”. 

São canadenses, porto-riquenhos, mexicanos, etc. Isto demostra uma preocupação ainda forte em associar aos quadrinhos de super-heróis uma dimensão homoafetiva. O super-herói que mais se destacou neste período foi o mutante Estrela Polar (Jean-Paul Beaubier, criado por Chris Claremont e John Byrne), que já protagonizou diversas situações positivas e negativas. Na década de 1980, o Estrela Polar ficou até doente, numa clara insinuação de que estava com AIDS. Doença, inclusive que foi associada à diversos personagens gays dos comics, como acontece om alguns personagens coadjuvantes na revista Hulk (em 1991). Mas, salvo poucas exceções, no universo dos super-heróis a presença de personagens gays ainda é tabu e representada de forma estereotipada. 


No universo de mais de 1000 personagens, encontramos apena suma dezena deles associados à uma identidade não heteronormativa. E quando olhamos amis de perto, estes personagens são secundários, não tem revista própria ou pertencem a realidades alternativas. A Kate Kane (atual Batwoman) da DC talvez seja a mais proeminente, no momento.

Mas há outras situações. Nos mangás japoneses, as múltiplas identidades sexuais são retratadas de forma muito mais inclusiva que nos comics. Há quadrinhos produzidos para diversos perfis de comunidade: Há quadrinhos de aventura feitos para meninas, onde aparecem romances lésbicos, denominados de “Shojo-Ai”; Há outros voltados para meninas lésbicas. Entretanto, quando estas histórias são produzidas para o público masculino, passam a ser denominado de “Yuri”. [...]quadrinhos voltados para os romances homossexuais masculinos, quando são feitos para meninos, são chamados “Shonen-Ai” (com conteúdo menos erótico) e quando são feitos para as meninas (!) são chamados de “Yaoi” e em grande parte são desenhados por mulheres que se especializaram em desenhar para “meninas que gostam de meninos que gostam de meninos”. 

Nas produções artísticas japonesas que são associadas à pré-história dos quadrinhos, já há a presença de diversos personagens com sexualidades não-heteronormativas. E lá, ao contrário do ocidente, personagens com múltiplas identidades sexuais aparecem como pessoas normais nas histórias. Isto é, suas identidades sexuais não são problematizadas de forma negativa na história.

Agora, se caminhamos para os quadrinhos undergrounds e o universo das tirinhas de humor, a história é outra. Nestes ambientes os personagens LGBTQ+ são muito amis frequentes e tem voz. Como costumam ser produzidos por artistas engajados ou militantes, conseguem defender suas causas e instruir, através do humor, as questões que reforçam suas lutas identitárias e processos de valorização política e cultural. 

E são muitos os casos... no Brasil e no mundo. E com a internet, mesmo quando não são publicados em jornais de grande circulação, são conhecidos pela comunidade dos quadrinhos e pela comunidade LGBTQ+

+ O movimento de contracultura foi importante para que personagens de diferentes orientações sexuais tivessem mais espaço nas HQs? Estou perguntando isso porque consegui conversar com a Trina Robbins, que foi uma importante quadrinista feminista e hoje atua mais como pesquisadora, e ela contou sobre como esse movimento foi importante para as HQs underground norte-americanas. Há outros fatores que podem ter colaborado para uma maior representatividade?

Sim, claro. Principalmente por defenderem uma agenda a favor das minorias e contra o status quo. Quase todos os nossos artistas (ilustradores, chargistas, quadrinhistas) que atuaram na contracultura criaram personagens com uam sexualidade dissidente. 

E, seja pelo humor ou pelo drama, (e as vezes, pelos dois) defendiam as causas e lutavam (com seus meios) pela compreensão das necessidades desta comunidade.


Diversos fatores colaboraram para uma maior representatividade da comunidade LGBTQ+, entre eles, o reconhecimento de sua agenda de demandas por parte do poder público. Além dos princípios de cidadania focados na educação para a diversidade.

O fator decisivo foi a insistência dos desenhistas em continuar a produzir material, mesmo quando não tinha apoio. Usavam toda a criatividade do mundo para defender seus valores de forma simpática e cômica, mas sem perder o viés crítico e denunciativo. 

Um bom exemplo disso é a personagem “Maria”, uma simples dona de casa, lésbica, de opiniões políticas fortes, produzida por Henrique Magalhães, que existe há 30 anos.

 + O senhor avalia que há alguma diferença entre os personagens LGBTQ+ em quadrinhos mainstream e autorais? Pode citar alguns dos principais personagens e obras?

Sim, bastante. Os quadrinhos mainstream tem sérios problemas para inserir personagens com sexualidade dissidentes. É muita gente envolvida e muitas opiniões divergentes para conciliar e os fãs são uma comunidade muito sensível que vão da adoração ao ódio. 

No quadrinho autoral, o autor tem mais liberdade de criação, composição e mudança. Por isso, estes personagens são muito mais frequentemente duradouros que nos quadrinhos de editoras comerciais.
Além de “Maria” do Henrique Magalhaes, já na década de 1970, temos “os Fradins” de Henfil (1976). Na década de 80: Nanico”, de Angeli. Um homossexual sem comportamento afeminado, mas com apelo de humor. Os cowboys gays Rocky e Hudson de Adão Iturrusgarai ; o travestismo de ”Hugo” e depois a tirinha biográfica de “Muriel” da Laerte, esclarecendo o que é o crossdressing. Mais recente há “Katita”, as situações cotidianas e engraçadas de um grupo de amigos gays e lésbicas, de Anita Prado e Ronaldo Mendes; “Adrian”, de Emir Ribeiro, retratando de forma satírica as dificuldades de uma pessoa hermafrodita.

É também o caso da tirinha “Apolônia vai à luta” de Antônio Aristides falando da vida das travestis; “Ber, the bear”, de Rafael Lopes, que retrata a vida dos “Ursos”, como são chamados os homens gays peludos, e “Torta de Climão”, de Kris Barz, que faz uma webtira com temática gay, distribuída por meio de uma página no Facebook, brincando com os estereótipos relacionados aos casais de homens gays.

+ Quais são os principais autores LGBT no mercado de quadrinhos?

É bom lembrar que nem sempre os\as autoras LGBT produzem material sobre seu universo ou militando por seus ideais. Há centenas de incógnitos. Já entre aqueles que militam ou produzem sobre o tema, muitos já foram citados acima. 

Realmente a Laerte impactou o mercado, pois, ao contrário dos demais, já era um ator respeitado no mercado de charges e tirinhas. Muriel veio para dar voz à sua própria identidade crossdressing e militar por direitos de reconhecimento das necessidades deste público. 


Tanto que a Laerte hoje é uma embaixadora dos movimentos LGBTQ+. E o gênero de quadrinhos autobiográficos permitiu que uma nova forma de discutir estas questões chegasse ao mercado sem ser através do humor escrachado ou satírico. Alison Bechdel é uma delas. E tem estimulado autores nacionais na mesma linha como “o ciranda da Solidão” do Mário Cesar e a Revista Plaf, de um coletivo e quadrinhos em Recife. 


Em 2016, inclusive, a editora Marca de Fantasia do Henrique Magalhães, fez um concurso de quadrinhos só com temática relacionada à homossexualidade e os premiados foram publicados no álbum: “Amores plurais: quadrinhos e homossexualidade”. Há muita gente produzindo, principalmente, na internet, com tirinhas e quadrinhos independestes sendo lançados nos eventos e festivais. E são estes autores anônimos que conseguem defender seus ideais e dar voz às minorias...


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