[Crônica] Entre o consumo e a falta dele: liberdade



Foto: Amaro Braga. "Fiquei em dúvida se era para o corpo ou pra salada...." Recife, 15 de janeiro de 2020. 


Entre o consumo e a falta dele: liberdade

No fim da adolescência eu acreditava que ter dinheiro implicava em trabalhar muito para ganhar mais. Eu precisava trabalhar cada vez mais para ter mais dinheiro. No início da minha vida adulta, entretanto, percebi que isso não era verdade. Me vi trabalhando mais e ganhando menos (principalmente depois que comecei a pagar imposto de renda). Em verdade, quanto mais dinheiro eu ganhava, menos dinheiro eu tinha. Isso acontecia porque meus gastos aumentavam. Foi quando tive o estalo: menos é mais. 

E de lá para cá, fico na tentativa de implementar a filosofia. Não é fácil. Vivemos em um mundo consumista. E não consumir implica em ser excluído de muitas atividades sociais e do relacionamento com muitas pessoas que são orientados pelo consumo (ou pela troca simbólica dos atos consumistas). Não compro roupas a não ser que realmente precise. Detesto, de coração, trocar de carro e de celular. Eu os uso até que eles não queiram mais me servir.... Mas, bares e restaurantes sempre foram minha fraqueza.

A Pandemia nos propiciou – além de todos os seus efeitos negativos – a oportunidade de rever uma série de práticas, feitas por hábito, principalmente ligadas ao consumismo. Tivemos a evidência de como nossa vida social é preenchida por práticas supérfluas. Que podem ser substituídas por práticas mais simples e econômicas.  

Já se foram quatro meses que me mostraram que não preciso de restaurantes, cinema e passeios nos shoppings. Minha fatura de cartão de crédito corresponde à 10% do que era. Eu gastava 100 reais por semana de combustível. Em 4 meses, só gastei 120 reais ao todo no posto de gasolina – E isso porque fomos algumas vezes para nossa casa de praia, um pouco distante. E ao não usar o carro, também me livrei de taxas de estacionamento, zona azul, flanelinhas, que de moeda em moeda vão nos levando centenas de reais ao mês. Fico imaginando o quanto de CO2 deixei de emitir...

Mas não é só isso. Há produtos que somos obrigados a consumir devido às nossas relações sociais cotidianas externas ao ambiente doméstico. Aqui em casa, com dois filhos adolescentes, dois fracos de perfume e dezenas de desodorantes eram consumidos por mês. É incrível a necessidade destes jovens machos de se manterem bem odorizados... Já foram 4 meses e o perfume, que custa centenas de reais, ainda está lá no banheiro, íntegro e resistente. Por mais que o senso comum considere que o uso de desodorante é indispensável, não o é. Ao não sair de casa, não correr, não precisar entrar em contato com pessoas estranhas, a frequência de uso dos desodorantes diminui bastante, pelo simples fato do nosso corpo não precisar dele. E com ele, o uso de roupas sociais, principalmente de calças, meias e sapatos. Pijamas e roupas de dormir nunca tiveram tanta importância e uso como agora.

A máquina de lavar foi aliviada do seu fardo semanal. Nossas roupas passaram a ter uma maior durabilidade no corpo. E aquelas camisas de malha, furadinhas, leves e sedosas ao toque, antes usadas apenas para a intimidade do quarto, ganharam uma ascensão às demais áreas da casa e às horas do dia. Elas aposentaram as roupas caras e finas. Tornaram-se as preferidas do "novo normal".

Nossas jubas não recebem mais tanta química, seja dos xampus industrializados, seja dos cremes de pentear ou da pressão térmica dos secadores de cabelo. E aqui em casa, tanto a esposa e os filhos são adeptos desta tortura capilar. Mas a abandonaram.  Cabelos brancos e desgrenhados respiram livres da etiqueta social que tanto os domesticaram. Ainda se submetem aos sistemas de controle, eventualmente, quando estamos trabalhando nas lives e nas aulas remotas, que precisam que a câmera seja ligada... mas andam muito mais felizes, soltos, libertos e naturais. E, pra bem e pra mal, nossos barbeiros e cabeleireiras deixaram de ganhar nosso dinheiro semanal, dificultando a vida deles, é verdade.

Nem tudo são flores. Minha conta de energia elétrica, vergonhosamente, dobrou os valores. O consumo de água mineral também dobrou. Às vezes, 20 litros não duram dois dias... E, sem as distrações do mundo lá de fora, pude ir terminando todos os meus projetos pessoais e acadêmicos que exigiam uma maior atenção e dedicação. Me tornei mais produtivo, por assim dizer. Ou, de outro ponto de vista, passei a trabalhar muito mais. Não fomos para a sala de aula, mas lives, palestras e debates passaram a ocupar muito mais o tempo. Não sei como vocês fazem por aí, mas um live de 30 min. me consome em 2h no mínimo de preparação, releitura e anotações. Assim como a quantidade de artigos que chegaram para avaliar, dobraram. E ocorreu outro efeito: ter o tempo “livre” me fez exigir muito mais de mim mesmo para compensar este tempo “livre”. Passei a me cobrar mais em produtividade. Em trabalhar ainda mais horas por dia. Dobrei as metas que existiam antes da Pandemia. Se era para eu publicar dois artigos por ano, eu precisava de no mínimo quatro agora.  Assim, são mais horas de leitura, mas horas de escrita, mas entrevistas para realizar, mais, mais, mais... Sim, o isolamento da Pandemia mexeu com a minha percepção do que é ser produtivo. O maior tempo “livre” me fez ficar com menos tempo “livre”. Parece um daqueles paradigmas temporais da física quântica...

Tenho ciência que minhas condições sociais e econômicas me permitiram ter benefícios no qual muitos não tiveram acesso. É um relato burguês, em todos os sentidos. Amigos perderam os empregos. Conhecidos adoeceram e morreram.  Agendas de trabalho e estudo foram severamente desarticuladas. Mas, como diz o ditado: "há males que vem para o bem". Apesar de contar o tempo para que a sociedade retorne e que nos livremos desta anormalidade que ceifou tantas vidas, não pretendo voltar tão cedo para o consumismo compensatório.

  


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