[Prefácio] A Cor de uma promessa


O Coletivo Splash Page e a Editora Quadriculando lançaram o álbum em quadrinhos Vermelho como a Neve dos quadrinhistas pernambucanos Felipe Moura e Fê Soares. 

Fui convidado para escrever o Prefácio do material, uma HQ poética de 56 páginas, feita em tons de preto-e-branco e vermelho. Uma poesia narrativa e visual bem interessante e que dialoga com a cultura pop, a história e algumas dimensões reflexivas sobre a natureza humana. 

O Prefácio foi bem trabalhoso, pois há um plot twist bem importante na obra e eu queria escrever um texto que demonstrasse a qualidade da obra, mas sem antever ou estragar nenhuma supresa da narrativa. Foram umas quatro versões textuais para chegar na frequência correta. O resultado final me deixou bem satisfeito...

Veja uma prévia na image abaixo (clique para ampliar).


A versão original segue logo abaixo. Possui 2 parágrafos a mais (acho que precisaram cortar para caber no espaço editorial que tinham). Mas é a vida. Nossas ideias e vontades são feitas de cortes e nunca se efetivam no mundo ideal por completo.


A Cor de uma Promessa 

Por Amaro Braga

Na fina fronteira entre o sonho e a memória, entre o ferro do foguete e o frio do espaço, nasce "Vermelho Como a Neve" (Felipe Moura e Fê Soares), uma obra-prima concisa da história em quadrinhos brasileira. Mais que uma história de ficção científica, é um poema visual que entrelaça a grandiosidade da corrida espacial com a intimidade mais comovente de memórias vividas e de promessas que ecoam além da vida. 
Acompanhamos um astronauta, perdido na vastidão inóspita, cujo resgate surge das mãos inesperadas de um solitário ancião. O regresso ao lar traz consigo não apenas alívio, mas um juramento solene: voltar para resgatar aquele que o salvou. O cumprimento dessa promessa, porém, guarda uma verdade que altera a própria percepção da realidade.
A narrativa de Felipe Moura desdobra-se em uma paleta emocional e simbólica: O mundo conhecido, tal qual as recordações distantes ou as incertezas do presente, surge em preto e branco: linhas puras e contrastes marcantes. 
O planeta alienígena, no entanto, banha-se em uma atmosfera única, saturada de tons de vermelho. Esta escolha estética transcende o visual: evoca a sanguínea, material ancestral do desenho, sugerindo vida, intensidade e uma estranha familiaridade. É como se o "vermelho soviético", contexto histórico sutilmente entrelaçado nos diálogos, evocando um tempo de utopias e tensões (Será que só vale para 1967 ou para qualquer dia de hoje?) se transformasse na própria tinta que finaliza esse mundo onírico. O vermelho torna-se a cor da lembrança vívida, da experiência visceral, do sangue do compromisso que pulsa sob a pele da história.
A jornada é de deslocamento e retorno. Ir à lua, confrontar o desconhecido, serve para iluminar, com força crua, o valor do lar, da conexão humana e do dever de gratidão. Nas palavras sábias e enigmáticas do velho Krasnyy, ecoa um chamado à transformação: "Começar a ver a vida com outros olhos". É uma crítica velada, porém profunda, à ganância e ao egoísmo que cegam, contrastando com a responsabilidade fundamental que temos para conosco e com os outros: "Nós somos responsáveis por nós mesmos". Há uma ironia delicada nessa afirmação, que só se revela em plenitude ao final da leitura.
O traço de Fê Soares é essencial nessa poesia. Suave, delgado, escorrendo como o próprio tempo descrito, ele dança entre o preto-e-branco da nostalgia e do cotidiano e o vermelho intenso da memória e do destino. Cada linha parece carregar o peso da espera e o sopro da esperança.
"Vermelho Como a Neve" é, portanto, uma metáfora germinada no solo fértil do imaginário político e humano. Fala da espera ativa. Não apenas por dias melhores, mas pelo cumprimento ético de uma ajuda recebida, por um agradecimento que se transforma em ação. É um encontro no limiar do tempo, onde almas em diferentes estações da existência podem se tocar, trocar sabedorias e sementes de esperança, enfrentando juntas as adversidades que transcendem eras. O espaço sideral, aqui, é menos um vácuo e mais um céu de promessas, um portal para o futuro que, inexoravelmente, nos conduz de volta a nós mesmos. Tudo mediado pela vivência que muda tudo. Ontem, hoje e sempre… 
De certo, você que nos lê, há de concordar comigo: o quadrinho brasileiro já superou a fase de só contar histórias de herói com sotaque estrangeiro ou lendas do folclore em versão pop (sem desmerecer, é claro, a beleza que há nisso). “Vermelho Como a Neve” parece caminhar nessa direção e tatuar essa maturidade: um cosmonauta filosófico perdido no espaço-tempo, um velho soviético que fala em 'ver a vida com outros olhos' e uma crítica à ganância humana. Tudo isso em tons de vermelho-sangue que escorrem como a tinta de um manifesto. Sim, ao que parece a utopia soviética é tratada como um planeta distante e de solitude (Freud explica!). 
Pois é, meus caros: enquanto Hollywood explode planetas em CGI, nossa HQ brasileira resolveu pousar suavemente em questões existenciais, vestida de ficção científica mas com a alma cheia de perguntinhas sobre ética, memória e promessas que dobravam o tempo. Decola sem piadinhas fáceis e sem vilões caricatos. Só um traço delicado, um roteiro enxuto e uma ironia fina que nos cutuca com uma boa dose de psicanálise auto reflexiva.
Prepare-se para uma experiência gráfica única, econômica em palavras mas imensa em sensações, onde a cor desvenda segredos do tempo e do espaço e ambos, inesperadamente, podem vestir-se de vermelho. Uma HQ madura, como um bom vinho tinto e cuja leitura preenche o ambiente com aquela luz acesa de penumbra vermelha de uma placa que marca a saída para iluminar nosso abismo existencial. 

Um detalhe curioso: Descobri no dia do lançamento da HQ que o Fê Soares foi meu aluno no curso de Publicidade, há uns 10 anos, na época em que fui professor da Faculdade Maurício de Nassau... Obviamente, não o reconheci, mas fui lembrado como tal. 



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