[Crônica] Eu, pão!
[Crônica] Eu, pão!
Bem
iluminada era a manhã.
O clarão matinal preenchia aquela área.
Foi para
lá que ele se instalou. Sentou-se de costas, como quem ignora o objeto
desejado...
Era uma área de alimentação em um hotel de passagem.
A calmaria
reinava.
Até as imagens da TV se alternavam em discreto silêncio, apesar do
número grande de visitantes que perambulavam entre os pratos de comida... mesmo
assim, todos ignoravam aquela sessão do restaurante.
Pelo calor que o astro
luminoso provocava, certamente.
Mas isso o agradava. “Nunca siga a maré! ”,
vivia se dizendo.
Além disso, apreciava
aquele calor. Ajudava-o a sentir-se vivo.
Havia se sentado com uma xícara de café
e um breve pedaço de pão...
Mas não sabia o que aquele pão fazia ali...
Daquele
ponto do salão, conseguia observar cada hóspede, que pulverizados, se
assentavam nas sombras, escapando da luz causticante.
Todos compartilhavam o
ambiente ao mesmo tempo que se isolavam.
Comiam em pausas.
Olhavam para o
vazio.
Mastigavam.
Engoliam.
Suas lentes escuras lhe permitiam mirar e tecer
narrativas sobre cada um deles...
Brincava, como se fossem seus personagens de
um jogo de RPG.
Imaginava suas histórias de vida sempre com um “se”...
“se eu
tivesse feito isso, seria como aquele?”;
“se eu não tivesse feito aquilo, seria
como ele?”.
Seguia cada possibilidade, intercalada com goles do café, amargo e
sedoso, quente e desejado, tal qual a vida.
Vidas espelhadas naquelas pessoas.
Naquele
momento, eram todas suas.
Tais pensamentos se apresentavam um atrás do outro.
Rápidos.
Pensava-os para tentar escapar de ponderar sobre si mesmo.
Tentava se decidir
como avaliar a sua própria existência.
Compartilhava da ideia de que havia uma
supervalorização da vida.
Muito desejada e pouco sentida ou significada pela
maré.
Se viu encarando o pedaço de pão no prato e
entortando, brevemente, os lábios ao questionar sua presença.
A vida era como
aquele pedaço de pão no prato, concluiu.
Fitava-o como quem recrimina o
indesejado.
O invasor.
Aquilo foi vivo.
E, morreu.
Quando trigo, foi triturado,
afogado, queimado.
Ganhou vida, novamente.
Se tornou pão para ter um fim
trágico.
Foi enganado... sob outra forma, alcançou outra chance de sentir o
fulgor da vida.
Para quê? Para ser
retirado de seu descanso. Ser cortado e espetado.
E, uma vez partido, esperar a
indecisão do algoz em arruiná-lo com céleres mordidas que o levarão ao mundo
escuro e destrutivo do sistema digestivo.
Aquilo era a essência da vida em
forma de morte ou a morte que se passava por vida.
A morte é o estado vindouro
do que está vivo, que nasce, apenas, para morrer.
O próprio pão seria a morte
de quem o consome.
A morte rasteira, que se espreita no sal, no glúten e nos
açúcares que o sangue há de espalhar... em cada pedaço como aquele, se encontra
perto do último.
Ali, no estante kafkiano, se viu no pão.
Ele era o pão.
E o
pão era ele.
E naquele eterno momento de incerteza schrödingeriano, ambos
estavam vivos.
Mortos.
Vivos-mortos.
Mortos-vivos.
O pão não sabia se seria destruído
entre os dentes desgastados de seu observador ou seria ignorado, relegado ao
desprezo da lixeira, do mofo e da podridão.
E, do novo ciclo de morte-vida, que
o levaria, indiscutivelmente, a um novo momento como aquele, na angustia
aflitiva do animal que o devorará em nome da vida e do viver.
Que saída tinha o
trigo? Senão, deixar-se dobrar sobre o vento e a foice e virar pão.
Que saída tinha
o pão? Senão, deixar-se queimar e cortar para satisfazer a fome dos outros?
Que
saída tinha ele? Senão, deixar-se viver a morte lenta...
Seu único pesar, era a
maldição de saber reconhecer a ironia onde o que atrapalha a vida é viver.
João Pessoa, Praia de Cabo Branco, 26 de julho de 2018, às 7h13.
João Pessoa, Praia de Cabo Branco, 26 de julho de 2018, às 7h13.
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