[Crônica] O Homem que Colecionava Pessoas



O HOMEM QUE COLECIONAVA PESSOAS

Foto: "Bem-vinda, amiga: Uma ilustre visitante na nossa piscina" 
de Amaro Braga. 6 de março de 2019, 14h58. Enseada dos Corais, PE.

Leia, ouvindo Adrian von Ziegler


Ele nunca escrevia com pretensões literárias ou acadêmicas. Tinha preguiça de escrever. Mas pensava muito. Na verdade, escrevia por pensamento, sem usar tinta e papel. Escrevia como alivio. Era uma maneira de esvaziar a mente, cujos pensamentos incessantes, consumiam, vagarosamente, sua sanidade. Escrevia longas tragédias enquanto observava o mundo ao seu redor. O escritor que viviam em sua cabeça tecia eternos diálogos, inaudíveis a qualquer um – menos a ele mesmo. 

Eram narrativas que ecoavam na mente, ao mesmo tempo em que falava ou escutava seus convivas. Não tinha erro. Não havia uma única conversa no qual este narrador onisciente não aparecesse para emitir sua opinião taxativa sobre a cena, as pessoas e o que resultaria daquilo. E nunca eram boas previsões... 

Talvez este detalhe fosse decorrente de algum transtorno psiquiátrico, suspeitava. Mas, o que ele poderia fazer? Apenas continuar a ser o que era:  um ser estranho e esquisito. Alguém, cujos pensamentos incessantes, narravam fatos sobre o mundo ao seu redor.

Um dos namorados de uma de suas amigas, certa vez, numa destas ocasiões triviais nos quais os amigos se encontram para espantar a solidão e compartilhar causos e contos, disse-lhe à queima roupa: “você é esquisito!” Não se questionava se era uma ofensa ou elogio. Pouco importava. Apenas riu... Sabia que era a verdade. Daqueles tipos de verdade que costumamos ouvir de crianças e pessoas “sem papas na língua”. 

Ele era uma pessoa de poucos amigos. Não tinha dificuldade em fazê-los, pelo contrário. Desde jovem, percebeu como é fácil construir alianças e manter um mínimo de trato social com os que lhe circundam. O mundo não sabia, mas gostava de colecionar pessoas. Diferentes. Exóticas. Sui generis. Tinha uma predileção especial por pessoas que não seguiam padrões e que viviam no contra fluxo da vida social. Não se tratava de revolucionários, punks ou militantes de oposição. Longe disso. Pessoas que não seguiam o fluxo opressivo das outras pessoas. Pessoas que garantiam sua unicidade na existência. 

Não se enganava. Gostava de compartilhar o espaço com estas pessoas. Elas lhe faziam se sentir à vontade. Vivo. Não se tratava de se sentir normal em meio à estranheza. Não queria ser normal, em absoluto. Detestava a normalidade com fervor. A normalidade tinha gosto metálico. Seco e distante. Nada lhe soava pior que fazer – e ser, aquilo que todos eram...

Havia sempre um investimento de sua parte em encontrar estas pessoas. E sempre as achava. Ficava impressionado como conseguia identifica-las em poucos momentos. E sempre se surpreendia quando encontrava paridade nas ações e ideias, estranhas, exóticas, não-naturais com estas pessoas. Sempre era um deleite quando as testava... Vendo até onde elas compartilhavam de seus mesmos valores, princípios e sensações. Era seu teste final, para incluí-las em sua coleção. 

Estes eram seus amigos. Tão desejados  e precisos que não os compartilhava com mais ninguém. Fazia questão de manter estas relações sem conhecimento uma da outra. Sempre os encontrava um por um e nunca comentava de um sobre o outro. Era trabalhoso. Mas era sua forma de preservar a qualidade de cada relação. Pessoas normais adoram compartilhar seus amigos. Apresentá-los a outros amigos. Fazer sessões conjuntas para emitir um sonoro “você precisa conhecer Fulano, é uma figura!”. Ele sempre revirava os olhos – mentalmente, ao passar por estas situações. Porque as pessoas achavam que seus amigos podem ser amigos de outras pessoas? Passava horas analisando estes movimentos. Desconfiava que as pessoas acreditavam, convictas, que as relações de amizade são feitas de algo que se pode passar de mão em mão...

Não, não gostava de compartilhar amizades. Não gostava de ter que comer, se divertir e conversar com pessoas que não passaram pelos seus critérios de elegibilidade. Amigos devem ser apenas de quem os fez. Ponto! 

Uma de suas amigas possuía uma vida sexual tão libertina e arrojada e um vocabulário tão chulo e vulgar que seriam dignos de um auto de fé medieval... E era isso  que lhe deleitava: ouvir seus relatos e desabafos. Não se tratava de pornografia ou interesse erótico sobre ela, apenas, o prazer de ser seu confidente e ter acesso à vida real, tão distante de seu cotidiano.

Havia outro, homem religioso, líder de comunidade, no qual compartilhava elucubrações filosóficas sobre a fé, as crenças e os dilemas da vida. Com ele, tinha acesso aos principais conflitos que atingem a alma humana. Tinha acesso às estratégias que ele usava para amenizar o sofrimento de seus fiéis, enquanto gerenciava o seu próprio. Ouvia como liderar uma congregação pode ser árduo e opressivo. Também era seu confidente. 

Estes dois eram seus amigos. Destes colhidos entre tantos estragados e de papo ameno. Preservados cada um em sua estranheza e particularidade. Estes dois jamais poderiam compartilhar o mesmo espaço. Não se trata de intolerância, tratava-se de bom senso, defendia. 

Sim, não deixava de ser um tipo de egoísmo. Mas a forma mais pura de amizade que conseguia identificar. Preservá-los era tão importante que, frequentemente, se exilava do contato com seus amigos. Passava meses sem falar com eles, apenas para ter o prazer de convidá-los a um café, praia ou bar – conforme cada caso, de maneira inusitada.  Pois, tinha convicção que estas relações se extinguem. Estragam-se. Perecem. E o tempo é o maior vilão nestes casos. 

Amizades não duram a vida toda. Nada dura a vida toda. As pessoas se enganam, quando acham que, ao reencontrar os amigos e comemorar, este seria um sinal de sobrevivência no tempo. Ria, mentalmente, de escárnio. Às vezes tinha pena da visão inocente que as pessoas mantinham sobre a amizade e calava-se, com receio de destruir a esperança que cada uma delas mantinha sobre a outra. Tal qual o pai, convalescente, que traz o regalo do Natal e deixa que o filho mantenha sua fé no imaginário e rubro velhinho. 

Ficava contente, principalmente, pelo fato de saber que não estava só. Da mesma forma, se chateava quando se via entre pessoas que destoavam tanto de si mesmo. 

Sabia identificar de pronto as relações de entre-amigos. Aquelas pessoas no qual sua amizade é derivada da amizade de outros amigos (ou de seus cônjuges). Os amigos que querem lhe apresentar aos amigos deles, almejando compartilhar a amizade e facilitar a vida, os encontros, as saídas e o dia-a-dia. Para ele, isso sim, era egoísmo. Pessoas que não se dão ao trabalhar de preservar suas amizades, apenas junta-las e submetê-las ao constrangimento de ter que compartilhar o espaço – e suas vidas com outras pessoas não escolhidas.

Ora ou outra, seguia, afirmando mentalmente, a rejeição dos vínculos de filiação empática que o levavam até àquelas pessoas e àquele momento. Sempre ojerizando a naturalidade daquela situação. Não passava um único momento sem saber (com a certeza da experiência) que aquelas palavras, gestos e convites não passavam de polidez ou obrigação decorrente dos vínculos sociais que os amigos, dos amigos, mantinham entre sí. Tudo para ele era tão esquematizado que via, entre as teias invisíveis, os nós que prendiam uns aos outros nos eventos sociais ao qual estavam. Obviamente, suas revelações eram silenciadas, ora pela dúvida e incerteza, ora pela cobrança opressora do superego que o mandava relaxar e aproveitar o momento – mesmo que efêmero. Mas nada desviava sua visão futura e o sentimento incessante de inadequação ao compartilhar o espaço com aqueles amigos postiços. 

Ele chegava até a mapear cada um deles:

Havia os que só eram seus amigos por pura conveniência: financeira, emotiva, social, profissional. Os que precisam de uma amizade bem definida. Que tenha carro. Que tenha uma casa com piscina. Que faça almoço e os convide. Que simplesmente ajude a pagar uma conta... Perder um destes elementos é perder a amizade ou ouvir um “Nunca mais nos vimos?!, porque será?” 

Outros são amigos por mera ocasião.  Amigos não de SER, mas de ESTAR. Eles estão amigos. Mude de setor na empresa. Mude de bairro. Mude de Estado. Mude de opinião política. Eles abandonarão a relação. A mudança é a desculpa para esfriar os contatos e arranjar outros amigos. 

Mas para ele, os piores eram os amigos postiços. Aqueles que cumprimentam com um sorriso, mas nem sabe seu nome ou se importam em decorá-lo. Os amigos dos amigos que sempre se encontram nos eventos sociais. Suas relações são fruto do momento. O amigo do amigo que lhe trouxe. O velho, “ficaria chato dizer ‘não o traga’”. Ele nunca deixava de ir para estes eventos, por mais que os detestasse. Precisava confirmar suas hipóteses. E ria profundamente quando não era convidado, obviamente, porque o amigo mediador não foi. Amigos postiços! 

Havia outra classe que também lhe incomodava. Os chegados por admiração. E estes, apesar de deseja-los com afinco, pois, em princípio, seriam os amigos mais sinceros, eram os que mais o incomodavam.  Seus agrados e elogios eram como navalhas sobre a carne do desmerecimento. Não demorava a evitar-lhes a companhia, desviando sofrer com a angústia e a culpa de estar entre eles. Eram amigos que escolheram ele como amigo, mas não faziam parte de sua antologia de carne, voz e sangue.  

Desejava ser cego do olhar para não ver que os amigos não passavam de expressões de uma busca eterna pelas próprias necessidades. Deles e de sua própria. Não estar sozinho... Era esta a força motriz nestas relações. Não comer sozinho. Não ir ao cinema sozinho. Não dormir sozinho. Não rir sozinho. A solitude era a necessidade imperativa que deveria ser combatida para evitar aquela situação tão desagradável. Saber que aquelas pessoas apenas compartilhavam um bem-querer insípido e volátil.
Resolveu que precisava aprender a racionalizar estas situações. Os normais tratam os amigos como instância de identificação. Uma maneira de se sentir SER algo. Pertencer a algo. Fazer parte de algo. Era por eles que se sabe quem se é. 

Mas ele rejeitava completamente esta dependência.

Pessoas normais gritam, espalhafatosamente, acenando seus membros,  tresloucadas, quando veem um amigo atravessar a rua ou entrar num loja... Ele não. Adorava vê-los passar. Observando-os no anonimato e no silêncio. Distante.

Estes amigos, não importam se são ou não reais. Não importa se são ou não duráveis. Os amigos devem ser vistos apenas no espelho. Nas sombras que se projetam de seu corpo e no eco em sua cabeça. Estes, sim, são eternos, duráveis e acessíveis a todo e qualquer momento.

Ele fazia como todo colecionador faz quando tem algo de valor. Ele as guarda. Mantém dentro de seus pacotes originais. Longe do toque. Distante dos curiosos. Apenas para ver de longe. Contempla-se, admirando o fato de tê-lo, sem uso, sem tocar, para não estragar. Amigos são feito nuvens: de longe, densas e das formas mais variadas, convidativas à imaginação. De perto: rarefeitas e insípidas.... 

É isso que dá valor a uma coleção.
Preservar o que os outros desgastam, usam e jogam fora.
E só quem coleciona, sabe o valor que a sua coleção tem.



Tecido na estrada vazia, entre PE e AL, em 31 de julho de 2018, às 17h26.

Revisado e ampliado na chuvosa tarde do Tabuleiro, de 1º de julho de 2019, às 15h47. 


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