[Crônicas] Ele é um Barbeiro! E isso não é um elogio...

Foto: Autorretrato. Memórias de mim mesmo ou lembrando de um passado. 2019.


Ele é um Barbeiro! E isso não é um elogio... 
Crônicas da Vida Real

Acabei de sair de um barbeiro que foi um verdadeiro açougueiro...
Sempre tive uma barba problemática.
Por isso, deixo a barba grande. A dor cruciante, o pescoço roxo, os sangramentos e pelos encravados me impedem de fazer a barba todo o dia. No máximo, uma vez na semana.
Só teve uma época em que, acidentalmente, encontrei um barbeiro que não me fazia sofrer... "seu Pará", lá no Recife antigo. Era um senhor de barriga protuberante, cabelos brancos e sem pelos no rosto. Suas mãos eram tão grossas e os dedos tão pequenos que me escapava como ele conseguia ser tão delicado.
Trocávamos pouquíssimas palavras.
Boa parte delas, cumprimentos de polidez...
Mas eu não precisava falar nada para seu Pará. Seus dedos tamborilavam pelo meu rosto e repentinamente minha barba estava feita. Sem dor. Sem sofrimento. Sem sangramentos.
A primeira vez fiquei tão surpreso com a rapidez e maestria daquelas mãos que me demorei observando o espelho...
Eu frequentei seu Pará por sete anos. Todas as segundas, durante a sesta, eu me deleitava naquela cadeira. Feliz. Sorridente. Grato daquele homem existir na minha vida. Seu Pará me acostumou mal... Bastava eu chegar, sentar e pronto. O serviço iniciava. Ele conhecia minha barba e eu não precisava dizer nada além do tradicional “boa tarde!”.
Ele não falava comigo sobre amenidades. Inclusive, descobri seu nome, por acaso, quando lhe chamaram certa vez... Mas seu Pará conversava com minha barba... Às vezes, eu ouvia os solilóquios quando, com uma pinça, retirava um fio revoltoso delicadamente do meu pescoço. Ou quando retoricamente disparava: “é aqui, dá uma volta...” referindo-se a um dos meus redemoinhos.
O ápice daquele momento era o tic-tac-tac das duas tesouras que abriam e fechavam, initerruptamente, deslizando sobre meu rosto, educando cada fio que ousava se erguer ante as navalhas imperativas que tão habilmente aquele homem ambidestro dominava. Naquele momento, uma toalha quente tampava-me os olhos e minha imagem mental só me remetia ao Edward do Burton.
E foi em um fatídico dia que adentrei aquele pequeno estabelecimento esquecido em uma rua vazia do antigo Recife, e me sentei em silêncio como sempre fazia que fui surpreendido por outro barbeiro. Pela primeira vez, depois de sete anos, falei o nome daquele homem que tanta paz havia me trazido: "cadê seu Pará?"
"Foi embora. Ele se aposentou. Voltou para o Pará!"... disparou sem pena, receio ou pudor.
Eu fiquei tão chocado. Tão perplexo, que sentei na cadeira calado e o novo barbeiro fez seu serviço costumeiro. A toalha quente sobre meus olhos escondia as lágrimas que caiam, parte pela dor que voltara a sentir quanto a lâmina deslizou pelo pescoço, cerrando meus pelos e minha esperança; parte pela angústia... Ele havia me abandonado. E mais uma vez na vida eu estava sozinho, fadado ao sofrimento.
De lá pra cá, passei por muitos mãos. Nunca alguém chegou perto daquela maestria em forma de mão... Alguns se esforçam para amenizar meu sofrimento. Outros, por mais avisos que recebessem, deixavam claro, o quão inapto à função estavam....
O de hoje, um dos piores que já estive, despertou lembranças terríveis... As lágrimas brotaram como a muito não acontecia e foram suficientes para desfocar minha visão desviada do diploma que aquele homem estampava na parede nua de seu abatedouro.
O símbolo de orgulho daquele homem só atestava sua incompetência. Seu sorriso amarelo refletia minha indignação com tamanho descaso com meus avisos, caretas e doloridas interjeições que verbalizava sem pudor algum...
Naquele momento. Quase 12 anos depois. Lembrei-me do seu Pará e da falta que ele me faz...
Pois lá estava eu, sofrendo naquelas mãos armadas, cuja arma, não era o veículo automotivo, mas a navalha, muito mais silenciosa e mortal.
Este homem é a prova viva dos que os portugueses, no século 19, de maneira ofensiva, chamavam de Barbeiro!!!  

[18:40, 8/16/2019] Nas ruas de São Carlos, SP.

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