[Crônicas] A Vida é uma peça de Roupa Amassada


A Vida é uma peça de Roupa Amassada


Quando compramos uma peça de roupa ou tecido, ele sempre está perfeito. Liso. Intocável. Mas basta vesti-lo. Usá-lo ou deixar que ele cumpra sua natureza de vestimenta que as marcas aparecem.

O tecido limpo ou usado sempre se encontra amassado. Vincado. São as cicatrizes de sua existência. É seu DNA... o tecido registra cada passagem da vida em seu corpo. Nós também. Física ou mentalmente, as marcas estão lá.

As roupas guardam nosso cheiro. Registram nossas passadas. Marcas de uso, de comida, de suor, de vida. Furos, rasgos, manchas, desgastes. Tudo está lá. Mas insistimos em esconder. Em lavar. Perfumar. Submeter cada marca de nossa existência ao calor escaldante e ao peso do ferro quente... que submete nossos registros existenciais às regras sociais da etiqueta.

Tem roupas que adoramos vestir. Não nos importamos se estão desgastadas, disformes ou rasgadas. Elas nos trazem conforto. Mas quando se trata de sair de casa, de encontrar outras pessoas, de interagir... rejeitamos estas peças amadas ou pior: torturamos cada uma delas ao afogamento, às torções e à surra da lavagem. Não satisfeitos com o sofrimento infligido, deixamos cada uma destas peças, presas sob o sol ou o vento incessante. Mas o sofrimento não acaba... as marcas de nossos atos selvagens precisam ser amenizadas e escondidas. Lhe passamos o ferro quente!

Em cada lavagem, motivada pela necessidade de se aparentar limpo e liso, o tecido vai perdendo sua estrutura. Vai desbotando. Rasgando... furando... se enche de fios e fiapos. Se tornam “bufentos”.

Porém, nós insistimos, continuadamente, em passar à ferro quente, cada um destes vincos. Nos preocupamos em apaga-los da nossa existência. E, principalmente, das vistas dos outros. Queremos parecer íntegros. Lisos. Perfeitos. Por mais que cada centímetro daquele tecido que reveste nossa carne e nos traz conforto ao tato, e sejam marcas, vincos, dobras e estrias de cada um dos nossos movimentos. São museus da nossa vida particular.

Muitos destes tecidos são resistentes. Duros. Não se dobram, mesmo em altas temperaturas e pressões do ferro. Outros, são tão finos e delicados, que o menor contato do ferro sobre suas camadas, os destroem por completo. Abrem um buraco no tecido, desabilitando-os enquanto vestimenta. Outros ainda, simplesmente, se ajeitam. Se endireitam. Ficam retos e uniformes, tal qual a mão que guia o ferro quente sobre as dobras, domesticando-as, uma a uma. E há aqueles que se queimam. Mãos insistentes ou desatentas são tão incisivas no uso do ferro que o tecido não aguenta a pressão e novas marcas se eternizam. Não fruto de suas andanças, mas da tentativa de se submeter às regras da lisura dos corpos que a usam.

Nossa vida é como uma peça de roupa amassada que insistimos em passar a ferro quente...






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